terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

M198-O HOMEM DA RAIZ DO BOLSO


O HOMEM DA RAÍZ NO BOLSO

Cheguei à Guiné-Bissau a 10 de Outubro do ano passado, com a missão clara de fazer a reestruturação administrativa e organizacional da CARITAS.

Os elevados índices de pobreza fazem com que esta instituição seja um parceiro privilegiado de organizações como as Nações Unidas e a União Europeia, daí que o rigor organizativo terá de ser um dos elementos distintivos da sua acção.

Face a isto, revesti-me de toda a coragem, sentido profissional e pragmatismo para estar à altura do desafio. Pensei que a minha acção seria um contributo importante para a organização institucional do país, uma vez que do meu trabalho, eventualmente, surgiriam activos organizativos aplicáveis a outras instituições.

Cedo percebi que só seria bem sucedido por aqui, se temperasse a frieza inicial que me servia de protecção, por um profundo sentido humano que, na realidade, justificava a decisão que tomei. Deste exercício humano e pessoal, resultou um despertar para uma outra forma de ver o homem no mundo e na vida.

Como há despertares que nos agitam e nos mobilizam os passos, certo dia, rendido, tentei-me na direcção da urbe profunda. Deixei-me levar pelo movimento colectivo de uma cidade que pulsa fervente num caos de trânsito, que pula por estradas outrora asfaltadas, num movimento incessante de gente que tudo oferece, num nevoeiro místico de pó e gasóleo.

Entrei no Bandim, um dos mais emblemáticos mercados tradicionais de Bissau. Atraído ao seu interior, senti o estômago vacilar, mas logo o espanto se encarregou de o encorajar, até se instalar o encanto pelo que se deparava aos meus olhos.

Era incrível! Tudo se vendia. Cores, aromas, soluções e bens… Numa simplicidade alquímica de quem do nada tudo tira e tem.

Recomendo-me ao saber ancestral de um vendedor velho e causticado, que sentado no chão, cheio de poeira e mau trato, me recorda a velha inimizade entre a descendência de Eva e a da serpente, que abunda pelas terras da Guiné. Estendendo para mim a sua mão fechada, convida-me a tomar nas minhas um objecto, segundo ele, sacro.

Descubro na palma da minha mão uma raiz. Uma pequena raiz branca, polida e com um cheiro forte e intenso. Segundo o velho vendedor, aquele objecto seria como que o meu anjo da guarda por aquelas paragens, não havendo assim víbora que me atacasse ou corrompesse.

Desde então descobri na Guiné rostos duros de pedra, mas capazes dos mais belos sorrisos que alguma vez vi. Percebi que também aqui a vida vale a pena, pelo tal sorriso que se faz com pouco mais de nada.

Descobri, por aqui, saudações duplicadas a cada manhã e que são mote para mãos dadas e apertadas num gesto longo e prolongado, num gesto de alguém que, efectivamente, está e deseja estar unido ao outro.

Descobri paisagens…Uauuuuu! De cortar a respiração. Justificando, também, a passividade autóctone ante a monumental espectacularidade com que o criador dotou o horizonte, tirando qualquer réstia de coragem a quem o possa querer conquistar em vez de o contemplar.

Descobri que em tudo na vida o sentido místico da missão tem de imperar. Porém, sou um profissional da economia, dos números e das organizações humanas…Pragmático inveterado, mas confesso que diante de tamanha ciência no saber estar de um povo, rendo-me aos seus conselhos e guardo no meu bolso a raiz que me defende do veneno da víbora e me lembra que aqui o homem é sábio e está mais à frente.

Bissau, 05 de Fevereiro de 2010; 18:32 (Hora local)

Texto de Emanuel Pereira, da Vestiaria-Alcobaça, que se encontra a trabalhar na CARITAS,na GUINÉ BISSAU desde Outubro de 2009.(Na foto grande aspecto do de Bissau-porto antigo; na foto pequena o autor junto ao Rio Geba)

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