quinta-feira, 8 de outubro de 2009

M50-«GUERRA SEM FIM» Ex-combatentes Homens com dores de alma

Mina antipessoal

Tinha amanhecido há pouco.
A patrulha estava marcada para as 6H00.
Os militares do 3º.Pelotão «aprontavam-se» para mais uma saída.
Iam «pró mato» sem o seu Alferes(Belmiro Tavares) que estava em Bissau.
O Furriel Figueiredo(de Monção) apareceu na «caserna» para «apressar» a malta.
O Soldado Nascimento(da região de Sarzedas) estava um pouco atrasado. Arrumou as cartas que tinha recebido no dia anterior e juntou-se à sua Secção .
Alguém dizia: «Porque é que esta porra desta patrulha há-de ser tão cedo. Ainda por cima está cá uma merda de um tempo!».
6h00 da manhã. Toca a subir para as viaturas.
O Alferes Mendonça deu ordem de partida e a coluna pôs--se em marcha.
Quem ficava no aquartelamento acenava aos que partiam e desejava «boa sorte».
Binta ficava para trás e havia que «pôr a bala na câmara».
Toda a gente o fazia automaticamente.
Ia-se «bater» a região de Banhima-Santacoto-Jongo com um grupo de combate(30 homens).
O dia estava muito nublado e de vez em quando chovia torrencialmente.
A coluna de viaturas avançava com dificuldade por causa da lama.
Alguém com piada dizia que já era de tempo de alcatroar aqueles caminhos...
Como fazer boas médias com as viaturas a atascarem-se a todo o momento...
Atingimos Genicó Mandinga e os homens do 3º. Grupo de combate apearam-se.
A coluna ficou-se por ali com os condutores e mais alguns homens para fazer a segurança.
Os militares apeados seguiram em fila indiana (bicha de pirilau) e, tocados pela chuva, atingiram com rapidez Banhima.
Fez-se uma pequena paragem para retemperar forças.
Bebeu-se uns goles do cantil, quem tinha trazido farnel comeu alguma coisa, ajustaram-se as cartucheiras e ala para a frente que se faz tarde.
Manteve-se o dispositivo – «bicha de pirilau» – e avançou-se em direcção ao objectivo.
Próximo de Santacoto os homens da frente – os da Secção do Furriel Rodrigues igueiredo – seguiram um trilho(que parecia recente) na beira esquerda do caminho.
A chuva fustigava sem piedade os militares.
Caminhava-se com esforço e em silêncio.
Um estoiro inesperado surpreendeu toda a gente.
Houve reacção de alguns dos nossos que se deitaram para o chão e dispararam para a frente e para os lados.
Quando se restabeleceu alguma calma deu para perceber que o militar que caminhava na frente estava caído. Junto a ele, no chão, parecia sair fumo de um buraco.
Rapidamente se percebeu que o soldado estava ferido e que tinha pisado uma mina anti pessoal.
O seu pé direito tinha desaparecido! O coto da sua perna mutilada era horrível de se ver.
Tinha calhado «a má sorte» ao soldado João Nunes do Nascimento.
O cabo-enfermeiro Pereira fez os primeiros socorros ao Nascimento e entrou-se em contacto via rádio com a coluna para se deslocar ao local o Furriel Enfermeiro Oliveira.
Fez-se um dispositivo de segurança à volta do ferido, cujo estado preocupava toda a gente.
O Furriel Enfermeiro chegou e conseguiu estancar a hemorragia com a aplicação de um garrote.
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O soldado Nascimento estava em estado de choque. Não falava e estava muito agitado. As cores da sua cara eram difíceis de descrever. Estava lívido, cinzento e naquele local(e
naquelas condições) dificilmente se conseguia fazer alguma coisa que aliviasse o seu sofrimento.
Pela primeira vez enfrentávamos as terríveis consequências de uma mina anti pessoal.
Havia que evacuar o Nascimento com a maior urgência.
Contactou-se Binta para pedir um helicóptero.
A resposta que nos chegou passado algum tempo não foi nada animadora. Com o tempo nublado e chuvoso que se fazia sentir não poderíamos contar com o «heli» para a evacuação.
Embora o estado do ferido o desaconselhasse foi resolvido transportá-lo de viatura até Binta. Teríamos que fazer alguma coisa.
O caminho de regresso ao aquartelamento foi demorado e penoso. Cada solavanco da viatura que transportava o Nascimento era terrível para o ferido.
Fiz a viagem junto dele. Agarrava-lhe as mãos, limpava-lhe a cara e falava sem parar para o animar. O Nascimento piorava e a sua lividez era impressionante.
De vez em quando era preciso aliviar o garrote, o que parecia dar-lhe algum alívio, mas o seu tormento recomeçava quando este lhe era novamente colocado.
O tempo passava e nunca mais chegávamos a Binta.
Como é que iríamos conseguir a sua evacuação para Bissau?
Finalmente... o aquartelamento e... a boa nova que vinha a caminho uma avioneta para proceder à evacuação do Nascimento.
Ficámos logo na zona da nossa pista à espera do avião.
O Médico Dr. Barata tomou conta do Nascimento e todos que tinham lutado para o trazer até ali respirámos de alívio na esperança de que finalmente se conseguisse inverter a marcha dos acontecimentos.
Mas... tudo estava muito complicado.
Tinham passado mais de 3 horas e as bolandas em que tinha andado o Nascimento no transporte de Santacoto até Binta tinham deixado marcas.
As artérias estavam colapsadas e não se conseguia aplicar soro, já que plasma nem pensar. Não o tínhamos no Posto de Socorros da Companhia.
Tentou-se um desbridamento junto ao pé esquerdo mas
também não resultou. Em desespero de causa tentou-se a aplicação de soro por via intramuscular.
Chegou a «DO» a Binta.
Mais uma vez era o Sargento- piloto Honório. O que esse homem não conseguisse ninguém conseguia. Praticamente sem «tecto» tinha voado de Bissau até Binta em voo rasante, orientando-se pelo curso do Rio Cacheu.
Tinham passado 3 horas e meia desde que o Nascimento tinha ficado sem um pé ao pisar a mina A/P no trilho próximo de Santacoto.
Tinha-se utilizado no pedido de evacuação o código «Y»,que corresponde a um ferido grave. Devia ter vindo com o piloto um enfermeiro. Veio um Cabo-Mecânico! Porquê?
Ninguém na altura o conseguiu explicar.
Transmissão errada de código ou, por o voo ter sido decidido pelo voluntarismo do piloto em cima da hora, tinha-se improvisado !? Não estaria por perto nenhum enfermeiro?
Junto ao avião o que se pretendia acima de tudo era evacuar com a maior urgência o Nascimento.
Foi-lhe aplicado um garrote dos «Fuzileiros», que o Furriel Enfermeiro tinha em seu poder. Era mais seguro e menos doloroso dos que os do Exército.
Sempre com o motor a trabalhar o piloto preparou-se para levantar e foi explicado ao cabo-mecânico, que o acompanhava, que deveria aliviar o garrote de 20 em 20 minutos ao ferido.
O Nascimento estava mal, muito mal, mas se chegasse vivo ao Hospital havia de escapar. No HM-241 faziam-se milagres!
Caramba depois de tanto esforço o Nascimento havia de safar-se.
Ficaria aleijado mas com uma prótese... tinha toda uma vida à sua frente.
Foi com estes pensamento que recolhemos «a quartéis».
Que sacana de dia 30...
Fui ter com Médico de manhãzinha.
Fomos para o Posto de rádio para saber notícias do Hospital de Bissau.
Como estava o Nascimento!? A resposta foi brutal:
«O Nascimento morreu. Morreu com o Hospital à vista!
Lembro-me de me ter agarrado ao Dr. Barata.Chorámos juntos, amargamente, a morte do Nascimento.
Daqui a uns dias seria a vez da família receber a notícia. E chorar!
Nunca mais esquecerei a morada do Nascimento que escrevi nos meus «apontamentos de guerra»: Casal Águas de Verão – Sarzedas – Castelo Branco.
Casal Águas de Verão. Um nome poético, bucólico, correspondente a um lugar, que nada tinha a ver com a guerra.
Mais uma vez nos tinha calhado «em sorte» ver um camarada de armas ceifado pela morte.
E... numa guerra todos os mortos são sempre demais!

JERO

A páginas 135 da RESENHA HISTÓRICO-MILITAR DAS CAMPANHAS DE ÁFRICA (1961-1974), 8º Volume –Mortos em Campanha, Tomo II Guiné -Livro I, 1ª. Edição, LISBOA 2001 está referido, em “linguagem oficial”, o seguinte:

João Nunes Nascimento
Soldado-Atirador número 2169/63
Companhia de Caçadores Nº. 675
Unidade Mob.: Regimento de Infantaria nº. 16 – Évora
Solteiro
Filho de João Nascimento e Augusto Nunes.
Natural de Casal Água do Verão, freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo de Branco.
Local de operações: Na mata entre Banhima e Santacoto.
Data do Falecimento: 30 de Julho de 1965, no HM 241-Bissau.
Causas da morte: Ferimentos em combate.
Local da sepultura: Cemitério de Sarzedas

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