domingo, 23 de agosto de 2009

Uma viagem acidentada vivida e contada pelo Médico da "675"

O Médico
Uma viagem acidentada vivida e contada pelo Médico da «675»
Alfredo Martins Barata

«Esta é a história da «minha guerra»

«Tiros no Cacheu»
Houvera um desembarque de fuzileiros em Tambato Mandinga, no Oio, numa tabanca que um observador atento que suba o Cacheu até Farim descobre, a custo, entre árvores de grande porte que se erguem na margem Sul do rio.
A operação fora bem sucedida.
– Agora os tipos devem estar irritados. Já não torno a ir a Farim de bote de borracha; só de submarino – disse eu um dia depois ao jantar. Todos riram. Alguém depois falou:
– Dos presentes só o Doutor é que desconhece o que é uma emboscada.
– Sim, respondi e não tenho nenhum prazer em conhecer.
O problema em princípio não se podia encarar seriamente.

Estávamos em Binta havia 7 meses, nenhum barco tinha ainda sido atacado e, para ir à Metrópole como seria o meu caso dentro de pouco tempo, qualquer um de nós seria capaz de se meter a caminho nem que fosse a nado.
Porque apesar de todos os melhoramentos que tornam a vida menos dura em Binta, Binta é Binta e Lisboa é Lisboa.
Ora a primeira meta da viagem era precisamente Farim e foi fardado de «ronco» amarelo, de galões dourados e tudo, com máquina fotográfica na mão direita e o saco de bagagem na esquerda que embarquei, despreocupadamente, (e porque não?) certa manhã de Fevereiro numa ronceira L.D.M. rumo àquela vila.
Não ia só. Comigo ia uma pequena multidão colorida e palradora: eram mulheres indígenas cuidadosamente sentadas no chão, com as saias bem enroladas entre as pernas, tendo a seu lado um estendal de tachos e meias-cabaças cheias de tomates e arroz, era um cabrito barulhento e saltitante, eram pretos acocorados fumando cachimbo ou mastigando cola, eram alguns companheiros de Binta (entre os quais o nosso primeiro Santos) que na proa conversavam.
Toda esta feira flutuante dava uma nota colorida e alegre àquela austeridade cinzenta-bélica tão característica dos navios de guerra. Abandonada a um canto, uma metralhadora
apontava para o ar e chamava-nos à verdade: estávamos em guerra. Uns tiros isolados podiam atingir toda esta gente amontoada...
Mas, logo a seguir, a nossa atenção saltava para a vida, para o Sol e para a natureza que nos envolvia.
Chegámos finalmente a Farim, onde, depois de umas horas de espera inútil soubemos que o voo do Dakota tinha sido adiado para o dia seguinte. Paciência só no dia imediato
chegaria a Bissau.
Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitando o transporte da L.D.M. resolvi deixar a bagagem e voltar rio abaixo
até Binta.
A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que na margem, escolhiam poiso para a noite.
No dia seguinte de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole, desta vez só, sem o bulício da véspera.
O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos e que pouco a pouco se ia desvanecendo com o romper da claridade.
No interior do barco a tripulação tomava a seu café. Em cima, o piloto olhava atento o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para abreviar caminho.
Encostado à torre da peça desguarnecida, passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo:
– Aqui é a foz do Caur, mais adiante Tambato Mandinga...

Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens... Se não me engano... Que deixa ver as moranças da tabanca... Sim, é ali.
(Já lá tínhamos chegado e com efeito era ali).
De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.
Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo «deitar» das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no
flanco esquerdo que me puxava para o chão.
As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia que passaram no espírito, desapareceram rapidamente logo que verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.
Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro.
O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre 20 mm «calou» o tiroteio inimigo.
Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estaros terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da «operação», não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta...
A lancha voltou ao seu primitivo rumo e continuou Cacheu acima, a caminho de Farim.
Fez-se o balanço da situação; quando souberam que tinha sido atingido de raspão os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois vi que provinha das feridas.
Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazucada, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão
lançadas da margem para «ronco».
Os malandros tinham visto um oficial a 80 metros, de pé, isolado na coberta da lancha, feito «pato» com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.
Pouco depois desembarquei em Farim. O «Dakota» já tinha chegado e, quando a correr alcancei o Comando, já o avião se preparava para deslocar.
Ainda não era dessa vez que ia para Bissau.
Teria que esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha.


Alferes Mil. Médico Martins Barata “visto” pelo seu irmão Arqtº.José Pedro Roque Gameiro Martins Barata.

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